Microcrédito: levando crédito a quem não tem acesso ao sistema bancário tradicional | Marca-texto
A prática de oferecer pequenos créditos à população excluída do acesso ao sistema financeiro não é recente. Desde o século XV, tem-se notícia da existência de fundos de caridade na Inglaterra, criados com o intuito de fornecer empréstimos a grupos específicos, com reduzidas taxas de juros. No século XIX, surgiram os fundos irlandeses e as cooperativas de crédito na Alemanha (cooperativas Raiffeisen), que inspiraram a criação de instituições similares em outras partes do mundo [Hollis e Sweetman (1998)].
Foi, entretanto, no período recente que o microcrédito entrou em evidência, especialmente na segunda metade do século XX, após o surgimento de uma série de experiências de visibilidade internacional – lideradas, na maior parte dos casos, por organizações não governamentais (ONGs). Essas experiências distinguem-se das anteriores por terem desenvolvido tecnologias operacionais e financeiras específicas, mais adequadas às necessidades do seu público-alvo e capazes de facilitar, de forma considerável, o acesso ao crédito. As iniciativas de sucesso serviram, então, como inspiração para a multiplicação das instituições microfinanceiras (IMFs), as quais utilizaram as tecnologias já desenvolvidas – e, muitas vezes, criaram outras mais adaptadas aos seus ambientes específicos – com o intuito de conceder crédito a um público que, em geral, não tem acesso ao sistema bancário tradicional. Essas instituições são chamadas de microfinanceiras porque podem oferecer, além do crédito, outros serviços financeiros – como poupança, seguros, penhora, empréstimos para habitação, cartões de crédito e troca de cheques. O conceito de microcrédito está incluído no de microfinanças, sendo, portanto, mais restrito.
As práticas difundidas entre as IMFs levam em conta o fato de que o seu público-alvo não costuma ter condições para oferecer as garantias reais exigidas pelas instituições financeiras tradicionais. Assim, foram criados procedimentos para substituir essas garantias. São os chamados colaterais sociais, como alternativa aos colaterais financeiros. O aval solidário é uma das formas mais efetivas de colateral social. Nesse sistema, os tomadores de empréstimos formam grupos, no qual os membros se avalizam mutuamente. Dessa forma, os beneficiários fiscalizam uns aos outros para evitar a inadimplência e o cancelamento dos empréstimos. De acordo com Morduch (1999), o aval solidário reduz os efeitos negativos da assimetria de informação existente entre a IMF e os seus clientes, tais como a seleção adversa e o risco moral (moral hazard). A seleção adversa ocorre porque as instituições financeiras (IFs) não são capazes de distinguir os clientes mais arriscados dos menos arriscados. Para se proteger de eventuais perdas, essas instituições cobram de seus clientes taxas de juros mais altas, que acabam tornando os empréstimos mais atraentes para os clientes que apresentam maior risco, expulsando do mercado os menos arriscados. Com o aval solidário, esse problema é minimizado, já que, dentro da vizinhança, o fluxo de informações entre as pessoas é maior. Os vizinhos, por conhecerem uns aos outros, podem selecionar para fazer parte de seus grupos os tomadores que considerarem menos arriscados, excluindo os mais arriscados. Assim, a queda da taxa de inadimplência permitiria a redução do nível de risco enfrentado pelas IFs e, consequentemente, a queda das taxas de juros cobradas. Já o risco moral acontece após o fechamento do contrato de empréstimo, em decorrência das dificuldades e custos que as IFs enfrentam para realizar o monitoramento de seus clientes. A falta de um sistema de monitoramento eficiente pode ser um incentivo para que o cliente, na tentativa de obter maiores ganhos, invista em atividades mais arriscadas do que o combinado no contrato. No caso de fracasso do investimento realizado, as eventuais perdas serão divididas com a IF, já que o cliente não será capaz de honrar suas dívidas. Em caso de sucesso, ao contrário, os ganhos serão exclusivos do cliente. Tal situação constitui um incentivo para o investimento em atividades de maior risco. Quando se utiliza o sistema de aval solidário, as perdas passam a ser divididas entre os membros do grupo, fazendo com que eles fiscalizem as atividades uns dos outros, de modo a reduzir os riscos da IF e do próprio grupo. Apesar dos seus benefícios, o aval solidário não é adotado em todas as IMFs, em função, principalmente, de fatores culturais, como a dificuldade dos tomadores de estabelecer laços de confiança entre si para a formação do grupo.
Outras formas utilizadas pelas IMFs para reduzir os riscos de inadimplência são os esquemas de empréstimos progressivos, nos quais os valores do crédito aumentam à medida que o cliente se mostra adimplente perante a instituição. A amortização dos empréstimos costuma ser realizada em pequenas parcelas semanais ou quinzenais, de forma a evitar que os tomadores acumulem grandes dívidas. Além dos chamados colaterais sociais, as IMFs contam com um importante ator na sua aproximação com os clientes: o agente de crédito, que costuma fazer visitas pessoais aos empreendedores e aos seus negócios e é responsável por analisar e monitorar os empreendimentos atendidos e o seu fluxo de receitas e despesas, para verificar se há capacidade de pagamento. O monitoramento contribui para minimizar os problemas de risco moral a que estão suscetíveis as IFs. Além disso, o agente de crédito pode fornecer apoio técnico e de gestão ao empreendedor na condução do seu negócio. As práticas apresentadas representam importantes inovações e contribuem para o sucesso de diversas IMFs na tarefa de proporcionar acesso à população excluída do sistema financeiro tradicional. Essas práticas acarretam, todavia, significativo aumento nos custos das instituições, os quais já são altos por natureza, por causa do baixo valor médio dos empréstimos. Por isso, em muitos casos, as taxas de juros cobradas pelas IMFs são maiores que as praticadas no sistema financeiro tradicional. Os juros devem cobrir os custos financeiros e operacionais, mas não devem repassar aos clientes os custos de eventuais ineficiências das instituições. No setor microfinanceiro, isso pode acontecer principalmente porque ainda não existe concorrência em muitos países. O grande desafio das IMFs "está justamente em desenvolver uma estrutura organizacional adequada que permita ao mesmo tempo reduzir ao máximo os custos operacionais, sem perda de controle da inadimplência e com a cobertura dos seus custos" [Passos et al. (2002, p. 49)].
Leia mais no artigo Microcrédito como política de geração de emprego e renda de Shanna Nogueira Lima, publicado na Revista do BNDES 32.
Referências
HOLLIS, A.; SWEETMAN, A. Microcredit: what can we learn from the past? World Development Elsevier Science, v. 26, n. 10, p. 1875- 91, mar. 1998.
MORDUCH, J. The microfinance promise. Journal of Economic Literature, v. XXXVII, p.1.569-1.614, dez. 1999.
PASSOS, A. et al. Focalização, sustentabilidade e marco legal: uma revisão da literatura de microfinanças. Brasília: Boletim Mercado de Trabalho, Ipea, fev. 2002.
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