Como surgiram as companhias low-cost?

Foto: Brian (http://flickr.com/people/40563877@N00) from Toronto, Canada. Disponível em: <www.wikimedia.org>.
Embora seja um modelo de negócios disseminado por todo o mundo na atualidade, o conceito de empresa aérea de baixas tarifas teve início com as empresas chamadas de charter, ou “charteiras”, na forma aportuguesada. O berço desse modelo de negócios foi a Europa da década de 1960, quando as charteiras – operadoras de transporte aéreo não regular – passaram a levar, durante o verão, milhares de turistas dos países situados ao norte para as praias ensolaradas do Mediterrâneo e de Portugal.
O pacote turístico, que podia incluir também a hospedagem, era pago com antecedência. A rígida regulamentação tarifária então em vigor permitia assim voos bem mais em conta, dado o caráter turístico específico da viagem. Por outro lado, a charteira também tinha custos muito reduzidos, pois só operava com a aeronave lotada, sem a necessidade de esforços de vendas (a cargo de operadoras de turismo), sistemas de reservas, serviço de bordo etc.
Foi, porém, nos EUA que surgiu a primeira empresa regular que pode ser considerada uma low cost carrier (LCC). Seu modelo de negócio foi a inspiração para as demais empresas que surgiram depois em todo o mundo. Essa empresa foi a Southwest Airlines. Embora tenha sido fundada em 1971 para operar apenas no Texas, foi somente a partir de 1978 que deslanchou, pois pôde operar em todo o mercado doméstico norte-americano.
Até o fim da década de 1970, em todo o mundo, o mercado era dominado pelas empresas de modelo de negócio tradicional, conhecidas como mainlines ou – no caso do transporte aéreo internacional – empresas “de bandeira” (levavam a bandeira do país ao exterior).
Voar era visto como uma forma de deslocamento requintada, com diversos “mimos” à disposição dos passageiros: serviço de bordo completo, disponibilização de jornais e revistas, amplo espaço entre as poltronas etc. Tudo isso funcionava bem em um ambiente de preços altamente regulados, em que as empresas se distinguiam pelo serviço oferecido, procurando assim atrair os passageiros para seus voos. Entre as empresas, havia rivalidade, e não concorrência no sentido contemporâneo.
Esse padrão de mercado regulado prevaleceu a partir do término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Resultou da realização da Convenção de Chicago, em 1944, com representantes da aviação civil de 54 países, como explica Rigas Doganis em The airline business.
O transporte aéreo comercial passou a ser visto como um setor nascente e estratégico. Esse reconhecimento e o potencial de crescimento dessa nova indústria justificaram sua estrita regulação técnica e econômica. A Convenção de Chicago estabeleceu as bases do sistema do transporte aéreo em três elementos inter-relacionados: (i) troca de direitos para os acordos de serviços aéreos (para que empresas de um país pudessem voar para outros países); (ii) controle de taxas e tarifas aéreas; e (iii) controle das frequências dos voos e capacidade neles oferecida (número de assentos das aeronaves).
O resultado imediato dessa convenção foi a fundação da Organização da Aviação Civil Internacional (Icao, na sigla em inglês). Órgão filiado à Organização das Nações Unidas (ONU), a Icao é responsável pela uniformização internacional de procedimentos técnicos e operacionais da indústria do transporte aéreo e sua fiscalização, como descreve Marta Rodrigues em Turismo e transporte aéreo: o novo paradigma das low-cost.
Outra consequência dessa convenção foi o estabelecimento, em 1945, pelas empresas aéreas, da Associação Internacional do Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês), com a missão precípua de regular as tarifas aéreas internacionais e os padrões de serviços oferecidos pelas empresas, além de servir de câmara de compensação para passagens aéreas entre as empresas, entre outras missões.
Portanto, o resultado geral e direto foi a forte limitação da liberdade de ação dos agentes do setor, criando-se um ambiente extremamente regulado, inexistente em qualquer outra indústria desse porte e importância. Tal arranjo permaneceu inalterado até o fim da década de 1970, contendo-se assim eventuais inovações na gestão das empresas e limitando claramente a concorrência quanto a preços e a redes de transporte aéreo, tanto na esfera doméstica quanto na internacional.
Nos EUA, durante a década de 1970, intensificou-se o movimento, por parte de vários grupos da sociedade e pelo Congresso, em prol da desregulamentação e da livre competição no setor aéreo. A argumentação tinha por base os benefícios esperados para o consumidor caso houvesse a proliferação da concorrência, a qual poderia gerar tarifas mais baixas, maior oferta e diferenciação do produto. Também se vislumbravam impactos positivos nas empresas, que estariam sujeitas à concorrência de mercado e se enxergariam obrigadas a aumentar sua eficiência e inovar na administração. Já as incapazes de disputar esse novo jogo seriam eliminadas do mercado.
Portanto, os primeiros passos para a desregulamentação do setor se deram nos EUA, seguidos pela Europa, proliferando-se gradativamente pelo resto do planeta até hoje (em maior ou menor grau), inclusive no Brasil.
EUA
Depois de longos anos de muita discussão e debates sobre o tema, foi assinado em 1978 o Airline Deregulation Act (ADA), que acabou com os controles existentes sobre taxas, tarifas, rotas e capacidade das aeronaves para as empresas que operavam sob registro norte-americano. Embora afetasse diretamente o mercado doméstico, essa nova lei também levou a uma renegociação de vários acordos de tráfego internacional bilaterais, especialmente com alguns países europeus e asiáticos. Isso porque eliminou a monodesignação, ou seja, a permissão para que apenas uma empresa dos EUA – então a PanAmerican Airways – voasse para o exterior.
Dessa forma, satisfeitas as exigências de certificação técnica e de segurança a cargo da Federal Aviation Administration (FAA), que permaneceram intocadas no processo de desregulamentação econômica, voava quem quisesse, para onde quisesse, cobrando o quanto quisesse (ou pudesse). O objetivo maior era beneficiar os usuários do transporte aéreo, pela introdução da livre-concorrência entre as empresas – tradicionais ou novas entrantes – aumentando-se a oferta de voos, reduzindo-se as tarifas cobradas e promovendo-se a eficiência do sistema pela eliminação das empresas menos aptas à livre-concorrência (mais informações neste artigo).
Foi nesse novo ambiente que despontou a Southwest Airlines, empresa considerada paradigma do modelo de negócios low cost. Conhecido no início como low cost/low fare, ou seja, de baixos custos e baixas tarifas, o novo modelo introduzido pela Southwest baseava-se em ter uma estrutura operacional enxuta, com precificação agressiva, uma frota homogênea (um só tipo de aeronave), apenas uma classe a bordo, serviço de bordo simplificado, uso intensivo – desde a década passada – da internet como canal de venda, não adoção de programas de fidelidade/milhagem, operações em rotas de maior densidade e em etapas curtas, voos diretos, busca por alta eficiência e produtividade e, acima de tudo, um eficiente sistema de gestão de custos.
Com a consolidação da Southwest nesse modelo, voando para amplo leque de destinos nacionais com tarifas reduzidas, foi deflagrada uma verdadeira guerra tarifária entre as empresas aéreas. Como consequência, a indústria de transporte aéreo americano apresentou prejuízo de US$ 640 milhões já no primeiro trimestre de 1983 (mais informações neste artigo).
Decorridos mais de trinta anos desde então, os EUA viram muitas empresas novas surgirem e muitas outras desaparecerem. A cada período de crise ou baixa acentuada da atividade econômica, empresas eram fechadas ou incorporadas a alguma sobrevivente, dada a baixa margem de rentabilidade do setor. Ao mesmo tempo, as empresas low cost, mais bem estruturadas, aumentavam sua participação no mercado, o que persiste até hoje.
Este texto foi elaborado com base em artigo publicado no BNDES Setorial 44, intitulado Empresas aéreas de baixo custo, de autoria de Paulus Vinicius da Rocha Fonseca, Sérgio Bittencourt Varella Gomes e João Alfredo Barcellos, empregados do BNDES.