Manufatura avançada e política industrial dos EUA
Foto: Impressora 3D, exemplo de equipamento baseado em manufatura aditiva, uma tecnologia considerada de ampla aplicação na indústria. Wikimedia. Create it real, Kholoudabdolqader.
Desde os tempos de Alexander Hamilton1 – e sua proposição acerca da indústria nascente –, o governo estadunidense tem papel substancial na política industrial, comercial e tecnológica. Os EUA sempre utilizaram um amplo espectro de políticas, sendo especialmente reconhecidos por seu apoio ao complexo industrial de defesa.
Ao longo da história estadunidense foi desenvolvida uma infraestrutura institucional que estimula o desenvolvimento de inovações tecnológicas, conjugando o estímulo à pesquisa e desenvolvimento (P&D) com diversas outras medidas, inclusive políticas comerciais, exigência de conteúdo local e compras públicas.2
Os EUA foram o first mover em uma série de tecnologias, mas perderam participação em vários segmentos importantes. Tendo isso em conta, o desejo é desenvolver novas tecnologias habilitadoras e, a partir disso, se reposicionar como potência industrial.
Com efeito, a conexão entre inovação e atividade manufatureira vem sendo tratada como questão central. Como identificado em carta ao presidente Obama, que consta na abertura de President’s Council of Advisors on Science and Technology (PCAST, 19 2011), “(…) it is increasingly apparent that technology innovation is closely tied to manufacturing knowledge. We cannot remain the world’s engine of innovation without manufacturing activity”.
Para garantir que os EUA sejam mais atrativos à atividade manufatureira e se mantenham liderando a produção de conhecimento, o documento recomenda a criação de um ambiente “fértil” para a inovação. Como parte crucial dessa estratégia, há uma iniciativa que envolve primordialmente o apoio às pesquisas relacionadas às novas tecnologias habilitadoras, pré‑competitivas e de aplicação geral.
A recomendação-chave do PCAST (2011) é que o governo federal lance a Advanced Manufacturing Initiative, que combinaria diversas instituições, com destaque para os departamentos de Comércio, Defesa e Energia. Dessa forma, como precondição para viabilizar a ascensão da manufatura avançada, entende-se que são necessários vultosos investimentos (feitos diretamente pelo governo ou via parcerias público-privadas) que garantam que novas tecnologias sejam desenvolvidas nos EUA e que criem uma infraestrutura de apoio às empresas intensivas em tecnologia.
Tais investimentos envolvem um forte apoio a programas de pesquisa aplicada cujos impactos sejam potencialmente transformadores – essas novas tecnologias seriam a base de novas indústrias. Tal esforço seria complementado por iniciativas paralelas da academia e da indústria. Ademais, considera-se importante investir no compartilhamento das tecnologias e também de infraestrutura, uma vez que isso auxiliaria uma série de empresas. A infraestrutura compartilhada poderia ser utilizada de forma transversal, em especial por empresas de menor porte. Isso porque é razoável supor que empresas menores não investirão, individualmente, em toda a infraestrutura necessária para viabilizar a manufatura avançada.
A referida recomendação desencadeou a destinação inicial de US$ 1 bilhão para a criação da National Network for Manufacturing Innovation (NNMI), uma rede – inspirada na Fraunhofer, associação alemã de institutos de pesquisa – formada por institutos de pesquisa regionais chamados de Innovative Manufacturing Institutes (IMI) e que se propõe a acelerar o desenvolvimento e a adoção de tecnologias de manufatura avançada. Todos têm objetivos comuns, como a responsabilidade de desenvolver tecnologias de manufatura avançada, realizar atividades de pesquisa que empresas privadas por si só não fariam e desenvolvimentos que empresas privadas por si só não conseguiriam, bem como contribuir para a criação de mão de obra capacitada.
Questões como essas acabam por reduzir o custo e o alto risco de desenvolvimento e comercialização de novas tecnologias. Apesar dos objetivos comuns, cada instituto deve ter um foco específico (como manufatura aditiva, semicondutores ou materiais compósitos), sob a ideia básica de que funcionem como um hub regional de inovação.
Cada instituto seria operado por meio de parcerias público-privadas entre diversos atores (governo, academia e indústria), com o intuito de alavancar os recursos existentes com coinvestimentos de todas as partes envolvidas. Além da presença de diversas universidades, cabe destacar a participação conjunta de uma grande quantidade de empresas relevantes (como a General Electric, Lockheed Martin, Boeing, Airbus, Raytheon, IBM, Honeywell, Alcoa, Ford, John Deere, Toshiba, ABB, DuPont). A maioria delas é de capital estadunidense, tem forte inserção global e comanda ou faz parte de robustas cadeias produtivas.
No ano de 2012, os EUA propuseram a criação de 15 IMIs e, no ano seguinte, recomendaram que esse número fosse triplicado. Assim, em um total planejado de 45 institutos para o período de dez anos, foi criado um instituto-piloto ainda em 2012.
Esse IMI-piloto é denominado National Additive Manufacturing Innovation Institute (Namii) e, como o próprio nome diz, está voltado para a manufatura aditiva. Para possibilitar a criação desse instituto, cinco agências do governo foram reunidas e se comprometeram a investir os recursos necessários. Conjuntamente, os departamentos de Defesa, Energia e Comércio, bem como a National Aeronautics and Space Administration (Nasa) e a National Science Foundation, contribuíram inicialmente com US$ 30 milhões. Além disso, foi selecionado um consórcio para estabelecer o instituto, e este contribuiu com cerca de US$ 40 milhões.
O Namii foi criado para ser um centro de excelência nesse campo e fornece a infraestrutura necessária para apoiar o desenvolvimento de tecnologias e produtos relacionados à manufatura aditiva e a áreas como bio e nanomanufatura; materiais avançados e robótica. Esse piloto propõe-se a fazer uma ponte entre a pesquisa básica e o desenvolvimento do produto e para isso fornece uma estrutura que pode ser compartilhada por diversas empresas, bem como acesso a equipamentos de ponta e treinamento para qualificação da mão de obra.
Após o estabelecimento dos primeiros sete IMIs,3 o governo federal investiu mais de US$ 500 milhões e obteve mais de US$ 1 bilhão em apoio de empresas, academia e governos locais.
Em comum entre todos os institutos, podemos citar as seguintes características: (i) abordam o desenvolvimento estratégico de tecnologias habilitadoras e/ou novos materiais; (ii) têm alguns departamentos federais como parceiros importantes (juntamente com empresas estadunidenses); (iii) contribuem para a redução futura nos custos de aquisição dos materiais/tecnologias e também do consumo energético, entre outros.
1 Foi um dos “Pais fundadores” dos Estados Unidos, tendo participado do processo de independência do país.
2 Segundo Andreoni (2016), parte do sucesso de hoje se deve a uma sequência de apoios ao longo dos diversos ciclos de transformação da economia estadunidense. Além das políticas de compras dos diversos departamentos federais, programas como o Small Business Investment Company (SBIC) e o Small Business Innovation Research and Technology Transfer (SBIR) vêm sendo mantidos há décadas e combinam empréstimos, grants, garantias de compras públicas com o produto em estágio pré-comercial, etc., visando apoiar empresas de pequeno porte e OEMs e suportar o scale-up de sistemas ou componentes. Isso ocorre a despeito do orçamento instável, da relativa falta de coordenação entre diferentes atores e políticas e dos seguidos cortes de orçamento em diversos programas pelo Congresso americano.
3 Os demais IMIs existentes são: PowerAmerica; Institute for Advanced Composites Manufacturing Innovation; Digital Manufacturing and Design Innovation Institute; Lightweight Innovations for Tomorrow; American Institute for Manufacturing Integrated Photonics; e Flexible Hybrid Electronics Manufacturing Innovation Institute. Além da implementação dos institutos, existem outras iniciativas estreitamente relacionadas com a NNMI.
Esse texto é um trecho do artigo Reflexões críticas a partir das experiências dos Estados Unidos e da Alemanha em manufatura avançada, publicado no BNDES Setorial 44 por Gabriel Daudt e Luiz Daniel Willcox, empregados do BNDES.
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Referências
ANDREONI, A. Varieties of industrial policy: models, packages and transformation cycles. In: STIGLITZ, J.; NOMAN, A. (ed.). Industrial policy and transformation. New York: Columbia University Press, 2016. (no prelo)
PCAST – PRESIDENT’S COUNCIL OF ADVISERS ON SCIENCE AND TECHNOLOGY. Report to the President on Ensuring American Leadership in Advanced Manufacturing. Washington, DC: PCAST, 2011.