O complexo econômico e industrial da saúde como eixo de desenvolvimento | Artigo
Fonte: Wikimedia. Doctorqmd.
Além de seu claro impacto na vida das pessoas, a saúde é composta por atividades econômicas relevantes, que respondem em média por 8% do PIB brasileiro e que empregam mão de obra qualificada, composta fundamentalmente por pessoas de nível médio e superior (médicos, enfermeiros, farmacêuticos e outros profissionais de saúde). Ademais, a saúde mobiliza uma ampla cadeia produtiva de bens de alto valor agregado, sendo responsável por gerar e difundir conhecimento (GADELHA; COSTA, 2013).
As indústrias de saúde representam campo privilegiado de atuação conforme diversas teorias do desenvolvimento econômico. Segundo a teoria estruturalista,1 o processo de desenvolvimento econômico não segue uma linha evolutiva idêntica em todos os países, dissociada do contexto histórico.
Há uma significativa diferença entre os pioneiros (países centrais) e os seguidores (periferia). Os países retardatários deparam-se com um mercado já existente de bens industrializados, que eles desejam também consumir. No entanto, como são basicamente produtores de bens primários (com baixa elasticidade-renda relativa), caracteriza-se uma dinâmica de comércio internacional que os mantém especializados nesses bens e, na ausência de intervenções, a tendência é a perpetuação do subdesenvolvimento dos países periféricos, e não sua superação.
Com base nesse diagnóstico, definiu-se a industrialização como principal meta de transformação estrutural para atingir o desenvolvimento econômico e definiram-se as políticas ativas de promoção e proteção da indústria como meio de atingir essa meta (BRESSER-PEREIRA, 2016).
Já na visão schumpeteriana, a inovação é o elemento central para o desenvolvimento econômico, por introduzir mudanças qualitativas nas combinações de materiais e forças que constituem as atividades produtivas. Essas mudanças seriam materializadas por meio da introdução de novos produtos, matérias-primas ou métodos de produção, abertura de novos mercados e estabelecimento de novas formas de organização industrial (SCHUMPETER, 1997).
Ouras linhas teóricas mais recentes descrevem um fenômeno chamado de “armadilha da renda média”, que pode ocorrer em países que passam por um processo de urbanização acelerada sem a construção de uma estrutura industrial diversificada e de alta produtividade. Conforme essa vertente teórica, as políticas de desenvolvimento devem privilegiar a diversificação produtiva e o aumento da produtividade (FELIPE; ABDON; KUMAR, 2012; JANKOWSKA; NAGENGAST; PEREA, 2012).
As abordagens citadas são complementares na argumentação sobre a importância da base produtiva em saúde para o desenvolvimento. Ainda se observa uma desigualdade estrutural no comércio internacional de bens que favorece aqueles com maior conteúdo tecnológico e leva à perpetuação do subdesenvolvimento nos países que se especializam em produtos de baixo dinamismo.
Ou seja, continua pertinente o objetivo de transformação estrutural da economia, avançando, porém, além da industrialização básica, em busca do desenvolvimento e da produção de bens diferenciados e de alto valor agregado, que consigam obter e manter vantagem competitiva no comércio internacional.
Dessa forma, justificam-se a priorização de setores de alta tecnologia e as políticas de inovação voltadas à diferenciação de produtos, como ênfases contemporâneas das políticas de desenvolvimento econômico. Essa priorização é ainda mais relevante quando, além dos efeitos tecnológicos e produtivos, esses setores têm o poder de exercer amplo e profundo impacto social, como ocorre com os segmentos que compõem as indústrias de saúde, caracterizados pela produção de bens industriais intensivos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e serviços intensivos em conhecimento (GADELHA, 2003).
Dois segmentos industriais compõem o complexo da saúde. A indústria farmacêutica caracteriza-se mundialmente como um oligopólio baseado em ciência e tecnologia, no qual a diferenciação de produtos e a obtenção de rendas de monopólio derivadas da proteção patentária da inovação são as principais estratégias.
O mercado farmacêutico mundial movimenta cerca de US$ 1 trilhão, e as principais empresas farmacêuticas investem cerca de 15% de sua receita líquida em atividades de P&D, em média, destacando-se como um dos setores produtivos mais inovadores do mundo. O setor de equipamentos e materiais médicos, hospitalares e odontológicos, por sua vez, também apresenta altas taxas de investimento em P&D (6,5%), bem acima da média da indústria de transformação mundial (EVALUATE, 2016).
Por se compor de setores industriais dinâmicos, cuja competitividade baseia-se preponderantemente no uso intensivo de ciência e tecnologia para o desenvolvimento contínuo de novos produtos e serviços, as indústrias de produtos para saúde podem proporcionar o aumento da incorporação de progresso técnico na economia. Assim, são setores industriais potencialmente “desejáveis” para o propósito do desenvolvimento econômico, uma vez que dinamizariam o ambiente de ciência e tecnologia, incorporando o progresso técnico e gerando empregos de maior qualidade.
Entretanto, as atividades econômicas são social e historicamente caracterizadas e, portanto, não engendram as mesmas formas de relações socioeconômicas em toda parte. A base produtiva da saúde constitui uma área de intenso dinamismo, pois concentra alguns dos setores industriais mais intensivos em ciência, tecnologia e inovação.
Porém, as decisões alocativas de atividades de P&D das firmas multinacionais são definidas em função de aspectos como a localização de suas matrizes e sua disponibilidade de recursos humanos, financeiros e de infraestrutura. Isso contribui para a concentração estrutural dos esforços de pesquisa, desenvolvimento e inovação nas cadeias globais de valor em poucos países (RADAELLI, 2008).
Essa configuração limita em dois aspectos os países alienados na dinâmica locacional das atividades de P&D: reduz a apropriação dos ganhos econômicos advindos do progresso técnico da produção, já que as atividades mais sofisticadas são realizadas externamente; e restringe os incentivos para desenvolver soluções voltadas ao atendimento às necessidades específicas de atenção à saúde de sua população. Assim, reforça-se a importância não apenas de fortalecer a base produtiva da saúde instalada no país, mas também de fomentar seu adensamento tecnológico (PADULA; NORONHA; MITIDIERI, 2015).
Já o segmento de prestação de serviços de saúde destaca-se por seu grande peso econômico, como gerador de empregos qualificados. Além disso, é o motor da demanda dos segmentos industriais e o lócus da inovação em saúde, a ponte entre o usuário final e os produtos de saúde (COSTA et al., 2013).
Por sua natureza, os serviços de saúde são intensivos em pessoas. São considerados serviços com elevado grau de especialização, demandando mão de obra qualificada. Além disso, sua demanda é distribuída no território conforme a distribuição populacional, com idiossincrasias derivadas de fatores socioeconômicos, ambientais e culturais. Dessa forma, a distribuição adequada de serviços de saúde no território poderia permitir também a redução das desigualdades territoriais de emprego e renda.
A dinâmica entre os segmentos industriais e os serviços de atenção à saúde configura a relação sistêmica dentro do complexo econômico e industrial da saúde (Ceis). As duas esferas podem se retroalimentar de maneira virtuosa quando as atividades de maior complexidade tecnológica da cadeia são realizadas localmente e quando os padrões tecnológicos da indústria são orientados à atenção das necessidades da população local (GADELHA; COSTA, 2013).
Cabe notar que a definição de políticas públicas na área de saúde comporta uma gama variada de atores com objetivos diversos e muitas vezes conflitantes, evidenciando a necessidade da atuação do Estado como mediador dos interesses sanitários e de mercado.
Essa complexidade intensifica a importância de uma visão integrada sobre o conjunto do Ceis, entendendo essas atividades produtivas como interdependentes. Tendo em vista que as políticas públicas devem buscar o bem-estar coletivo, a abordagem sistêmica favorece também a orientação das políticas industriais e tecnológicas em apoio à sustentabilidade e à autonomia das políticas públicas de atenção à saúde (GADELHA; COSTA; MALDONADO, 2012).
Caracterizada a importância do Ceis para o desenvolvimento, há de se lembrar ainda que o planejamento de políticas públicas deve ser realizado de uma perspectiva dinâmica. Uma vez que a sociedade está em constante transformação, a construção de uma visão de longo prazo para a saúde tem que incorporar as principais tendências de impacto no cenário futuro da saúde, isto é, o planejamento deve refletir os principais desafios da sociedade.
1 A teoria estruturalista do desenvolvimento surgiu no período pós Segunda Guerra Mundial, tendo como base a macroeconomia keynesiana e a economia política clássica. Tinha como objeto o fenômeno do subdesenvolvimento das economias latino-americanas. Dentre diversos intelectuais que contribuíram para o debate, destaca-se Celso Furtado, cuja obra norteou boa parte das políticas públicas brasileiras de desenvolvimento, desde a década de 1950 até os dias de hoje.
Esse texto é um trecho do artigo O desafio do envelhecimento populacional na perspectiva sistêmica da saúde, publicado no BNDES Setorial 44 por Carla Reis, Larissa Barbosa e Vitor Pimentel, empregados do BNDES.
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Referências
GADELHA, C. A. G.; COSTA, L. S. A saúde na política nacional de desenvolvimento: um novo olhar sobre os desafios da saúde. In: GADELHA, P.; NORONHA, J.; PEREIRA, T. (org.). A saúde no Brasil em 2030 – prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: desenvolvimento, Estado e políticas de saúde [on-line]. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, v. 1, p. 103-132, 2013.
BRESSER-PEREIRA, L. C. Reflexões sobre o novo desenvolvimentismo e o desenvolvimentismo clássico. Revista de Economia Política, v. 36, n. 2, p. 237-265, 2016.
SCHUMPETER, J. A. Teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Coleção Os Economistas).
FELIPE, J.; ABDON, A.; KUMAR, U. Tracking the Middle-income Trap: What Is It, Who Is in It, and Why? (Working Paper, 715). Nova York: Levy Economics Institute, 2012.
JANKOWSKA, A.; NAGENGAST, A. J.; PEREA, J. R. The Middle-Income Trap: Comparing Asian and Latin American Experiences. In: OECD DEVELOPMENT CENTRE. Policy Insights, n. 96, maio 2012. [on-line].
GADELHA, C. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciência e saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 521-535, 2003.
EVALUATE. Evaluate MedTech World Preview 2016, Outlook to 2022. London: Evaluate Group, 2016.
RADAELLI, V. A Nova Conformação Setorial da Indústria Farmacêutica Mundial: redesenho nas pesquisas e ingresso de novos atores. Revista Brasileira de Inovação, Rio de Janeiro, p. 445-482, jul.-dez. 2008.
PADULA, R.; NORONHA, G. S.; MITIDIERI, T. L. Complexo Econômico-Industrial de Saúde, Segurança e Autonomia Estratégica: para pensar a inserção do Brasil frente ao mundo. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2015.
COSTA, L. S. et al. Análise do subsistema de serviços em saúde na dinâmica do complexo econômico-industrial da saúde. In: GADELHA, P.; NORONHA, J.; PEREIRA, T. (org.). A saúde no Brasil em 2030 – prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: desenvolvimentoprodutivo e complexo da saúde [on-line]. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, v. 5, p. 121-159, 2013.
GADELHA, C. A. G.; COSTA, L. S.; MALDONADO, J. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde e a dimensão social e econômica do desenvolvimento. Revista Saúde Pública, São Paulo, v. 46, supl. 1, 2012.